sexta-feira, 23 de abril de 2010

Entre nozes, sonhos e esquinas (ou Por achar que sei)

Sávio Drummond. Abril, 2010.


Mas, por achar que sabia, eu disse:

- Então esse raciocínio de que "trabalho" tem esse nome porque dá trabalho é como querer colocar as meias após os sapatos. E então? Quem nasceu primeiro? O ovo ou a galinha? Sabe que que é? É que a gente tem mania de criar fôrmas em cima do próprio molde... e a matriz a gente descarta... e então, ao fim de tudo, já não sabemos mais como eram as origens, porque elas vão se distanciando aos poucos. São 23:45h... está começando a esfriar.

Olhei para um dos três postes visíveis à minha frente... pequenos insetos rodopiavam em torno da luz. Por que apenas um dos três postes os atrai? Que força invisível aos meus olhos faziam a diferença entre as três luzes, que só aqueles insetos podiam notar? E no tardar da madrugada, eles estariam no chão... seis patas entrecruzadas sobre o corpo... corpos inertes. Era sempre assim... a luz que os traz é a luz que traga suas forças... até o fim. Antes que eles aprendessem a evitar o fardo.

Mas fui surpreendido, ainda:

- Sabe, rapaz, vc me parece esperto. Você pensa na origem das palavras? Você é sempre esperto assim?

Esperto, eu? Ele havia sido irônico? Não sei... não o olhei nos olhos naquele instante... ainda fitava os atos derradeiros do balé ao redor da luz. Mas respondi, não lembro bem se em voz alta ou em pensamento:

- Só quando estou acordado. À noite, se eu durmo, meu cérebro se ocupa de criar sonhos inúteis, contos de fadas, onde eu e minha paixão da minha vida estamos numa praia deserta vendo o pôr do Sol. E ao acordar então descubro que era só desperdício, e que a função de alguns sonhos é construir tecidos xadrez branco no branco e preto no preto, donde então descubro que a paixão da minha vida está construindo um castelo de areia dentro do chapéu do mágico de Oz... e é essa a quilométrica, tênue e por muitas vezes sutil distância que separa sonhos comuns nas madrugadas adentro de sonhadores compulsivos. Cabe a todos nós não calcularmos essas tênues distâncias... e não imaginar a comunhão nos elos dos tecidos xadrez que se criam dentro de todos nós... ou, num movimento físico invisível, descobriremos a ponte entre os mundos... E como dizia Stephen Hawking no seu bestseller pop, até o universo cabe numa noz. Não lembro bem se dentro dela ou na casca... mas também não li o livro. Para um esquilo, a casca de uma noz é o que separa a realidade árdua no seu trabalho de juntar nozes pré-hibernais do universo desejado contido dentro dela. É essa a distância entre os universos de um esquilo. Um universo vivido. Um universo inteiro desejado, invisível, porém pressuposto, contido numa noz. Uma casca separando os universos. Cães separam sonhos e realidade? Cães e homens são unidos por tantos laços comuns, mas talvez o maior deles é que são ambos grandes sonhadores. Sim, qualquer madame de shopping center distraída com suas vitrines de cristais inúteis sabe o quanto os seus poodles cor-de-rosa, verdadeiros algodões-doces ambulantes, e todos os cães de verdade sonham, e rangem sonhando, e correm sonhando, movendo suas pernas traseiras como pedais de bicicleta girando involuntariamente livres quando alcançam o céu. Mas se há algo que separa os sonhos de cães e homens é o fato de que os sonhos caninos nunca haverão de os trair, anunciando em voz demente o nome da amante na metade da cama dividida com a esposa. E os homens acordam mais tolos, depois de serem tolos sonhando castelos de areia impermeáveis e indestrutíveis às ondas na praia, como só sonhos permitem ser. E se descobrem fracos e enganados por algo que nem mesmo racionalizaram, ao perceber que no abrir dos olhos, a praia paradisíaca sobre cuja areia você estava sentado ao lado da mulher dos seus sonhos (pois é... olha ele, o castelo, olha ela, a mulher) estava a milhas e milhas do seu mundo genialmente torto... e você estava a muito mais que dois, três ou mil passos do paraíso e do seu amor onírico. Salve Evandro. Salve Charlie Brown, o sonhador dos sonhadores, o mestre das esperanças que não se acabam... Se todas as esperanças nas vidas de todas as pessoas fossem verdes como se desenham, fossem verdes como são os insetos que, via de regra, carregam esse nome, elas durariam mais. Não seriam as últimas a morrer, é claro... seus detentores carregariam esse troféu antes. Mas durariam mais, porque o verde que camufla é o que assegura passar mais tempo despercebido aos olhares dos perigos que a cercam. Por sorte ou por acaso, ela fingiu ser folha, por acaso ou desprezo, a morte deixou passar. Mas a vida é feita de contrastes, o mundo não é unimatiz, unicolor, e há um mundo cinzento no concreto urbano no qual vivemos e morremos, e nele, a esperança verde perde sua função, e vira alvo fácil, e morre antes. Há alvos fáceis em todas as esquinas. E há mais armas do que alvos, nas linhas retas que traçam os vértices de cada esquina. Uma mão estendida, um olhar trocado, uma esperança que se esvai, uma lembrança que não quer morrer, um sorriso que atrai, jornais, sonhos, fome, orgulhos e vaidades... tudo é alvo, tudo é arma. E sem camuflagem, sem castelos de areias impermeáveis e indestrutíveis, sem as cartolas que revelam magias dos mágicos de Oz travestidos nos sinais, as armas ficam invisíveis, os alvos explodem em cores berrantes.

Ali do meu lado, na estação, um homem navega seus sonhos, sem saber do ovo nem da galinha, de tecidos xadrez, nem dos universos de esquilos precavidos. Apenas navega, por entre as ilhas de um universo inteiro que cabe dentro de si. E por não saber, livremente ele sonha.
E por achar que sei, meus sonhos são acorrentados, e não posso navegá-los, porque não há força no vento das esperanças que movem as velas por entre os mundos dentro de mim.

domingo, 14 de março de 2010

A festa

Penso aqui com meu umbigo que eu nunca sou quem de fato sou, numa festa.
Então sugiro que quem queira me conhecer para além do traje, dos óculos, do rosto, esteja presente até o fim da festa, ou me acompanhe até esse momento, se possível for. Numa festa, qualquer que seja, eu sou na maior parte do tempo um tímido chato e talvez também um chato tímido. E isso é diretamente proporcional ao número de presentes no local, de forma que torna-se compreensível que é no exaurir dos tempos e das presenças que aos poucos vai se esmiliguindo a carapaça torta que traveste o olhar que me revela, o sentimento que me traduz, o gesto que me explicita em mim mesmo.

Não nego que há algo que talvez se mantenha imutável, até mesmo desde o início: a intransferível multitransparência que trazem os meus olhos no seu prazer de observar e buscar a beleza, e numa festa ela se traduz nas sutilezas dos gestos, das nuances e das feições femininas. Onde há um rosto, um gesto, uma pose enriquecidamente dotada de vantagens estéticas naturais, é bom que se diga nos tempos de hoje, os meus olhos entortam em assisti-los, tal qual a vareta radiestésica vibracionalmente se centra em seu objetivo de descobrir o até então oculto. É como o prazer silencioso de olhar uma bela foto, com um prolongamento naturalmente maior, dada a diferença de que imagens numa foto não mudam de posição, não ajeitam os cabelos escorridos sobre os ombros, não esboçam magnéticos sorrisos repentinos e não devolvem um olhar. Então é como olhar várias belas fotos numa sequência variável sobre um mesmo tema... e um tanto mais que isso.

Numa festa sou um viajante solitário dentro de um trem... o pensamento, cúmplice absoluto do silêncio de toda uma intimidade, está absolutamente voltado ao que os olhos vêem e então variam com a velocidade do que captam, das árvores que passam em curto-circuito – tal qual uma repetição de minideja-vus – pelas margens dos trilhos, à página cheia de letras de um jornal lentamente lido pelo senhor no assento ao lado, numa partilha unilateral originada pela sede da curiosidade que não se coube em si.
Festas são um carimbo de aprovação e autenticação da minha audição seletiva. Na maioria das vezes sou vitimado por uma surdez automática e mesmo involuntária se o repertório que desenha o soundtrack do filme interminável foge daquilo que me atrai nos vastos campos da música.

Imagino que ao final desse texto, não mais serei chamado por qualquer dos leitores (se houver de existirem, se houver de parar esse texto em alguma das minhas células virtuais de respiração) para qualquer futura festa, qualquer futuro chá de bebê, qualquer futuro batizado de cachorro, papagaio e hamster. Entenda, leitor, repito novamente: me chame para uma festa, mas por favor, não me julgue um mala, um introspectivo, um egoista, um insensível, um autista sem que cheguemos antes no momento em que mais da metade do bolo já foi consumida, 85% das cadeiras antes ocupadas já respiram aliviadas o vazio da sua existência agora inútil, cada música do repertório a girar nos infinitos cds já se repetiu algumas dezenas de vezes e a casca que me impede de ser quem sou, com a naturalidade mais crua e explícita de quem está num sanitário lendo um livro ou com velhos amigos-irmãos assistindo a um filme cômico na sala do apartamento, já se transformou numa tênue e quase despedaçada película. Então me ofereça um pedaço dos 15% que restaram do delicioso bolo e sentemos junto ao pequeno grupo que restou para falarmos de tudo que a avidez insolúvel de uma festa não permite falar, com a cumplicidade e interabilidade de olhar que o descompasso do liquidificador de almas flutuantes não tornaria acessível. E talvez até cantemos juntos, nesse último momento, entre sorrisos transparentes, o que a caixa mecânica a amplificar os sons gravados nos cds não saberia fazer soar por tanto tempo dentro de cada um de nós.

sábado, 15 de agosto de 2009

As mentiras da arte

A imagem na tv mostrava uma tela de 4,0 m de comprimento por 2,0 m de altura, toda branca, mas no seu centro uma linha grossa traçada cegamente por um pincel platicérdico deixava uma carga de tinta preta que gradativamente ia se exaurindo na distância entre o toque de pincel e seu último ponto de contato com a tela... o que mais? nada! Só isso... em resumo: uma faixa de tinta preta cruzando a linda e limpa tela vazia. E ao lado desta, uma figura humana vomitava explicações durante dois minutos, tentando dar forma e essência ao disforme. Como se já subjulgasse que aquilo não seria entendido por arte, e sentisse então a necessidade de dar o mísero tiro de misericórdia diante das câmeras: explicar o inexplicável; fazer presenciar sentimento onde não há nada o que sentir. Numa outra sala, uma parede branca... Nela quatro pedaços de madeira velha pregados um sobre o outro, formando um polígono irregular com um centro vazado... madeiras sem cor: só cor de madeira. Como se uma criança houvesse encontrado tais pedaços no quintal da casa e tivesse então a idéia de pregá-los apenas para passar o tempo, após brincar de esconde-esconde, no fim do dia, no curto intervalo que antecedia o momento em que sua mãe a chamaria para tomar banho. Mais uma vez, uma figura trajada em uniforme de pseudointelectual proferia explicações abstratometafisicoexistenciais acerca do resto de fogueira de São João aproveitado da madeira que não se queimou. Não muito longe, uma cadeira, velha, porém inteira e aparentemente usável ainda. Sobre ela uma vela, no centro de um prato. Dessas que a gente acende quando falta luz.
Eis, senhores, a Arte Moderna... quem inventou essa expressão? Quem fez conceber, na existência da arte universal deste século e do século que morreu, o âmago de que se alimenta a pátria dos picaretas? E o pior, a pátria do pai do pai do pai dos picaretas, que é aquele que ainda gasta suas cordas vocais explicando com uma vagabunda complexidade, o significado daquilo que audaciosamente ousam incluir no valoroso rol do que se chama arte. Recebo um e-mail: era a divulgação de um projeto musical. Li calmamente o conteúdo, os anúncios, a descrição. No final uma banda é citada, e em seguida a menção: "Considerado o melhor álbum brasileiro do ano pela revista Rolling Stone". Pois bem. Pensei: "Humm... suspeito, muito suspeito! Desde quando revista de música é termômetro de qualidade musical, principalmente quando tem intenção de ser??!!" E repensei: "Mas e aí? Porque eles estão sendo citados nesse tal projeto e porque, afinal, seriam citados na revista, não obstante todo o meu indiferentismo aos rótulos termométricos"? Resolvi tirar a dúvida, acreditando - por pura fé que tenho de ver coisas novas e de qualidade rolando no cenário midiático (é bom que se diga, afinal para muito além das irradiações radiotelevisivas, especialmente em se falando de Bahia, o que mais tem é gente fazendo música boa e tentando respirar e expirar sua arte em meio à poluída poeira sonora que pesa sobre todos os ares, de tchacos, tchecas, subidinhas, descidinhas, aiaiais, ieieiês e uiuiuis) paupérrimo que impera na cultura musical nacional dos últimos anos - que de repente algo de bom poderia chegar aos meus tímpanos. Qual o quê! Fiquei me perguntando por qual parâmetro revistas de música escolhem um nome e dizem: "este é o melhor álbum deste ano", após ter percebido que o que ouvi era um conjunto de músicas sem nada mais além do lugar-comum, sem absolutamente nada de interessante ou novo, sem melodia, sem arranjos... mais uma banda executando um bando das mesmas coisas de sempre, soando um mesmo som tal qual tocam milhares e milhares de outras bandas que apenas aumentam a poeiria escassez de arte, novidade e de sensibilidade de que se sustenta a música atual.
Juntei os trapos... a exposição de arte ali vista na tv e a facilidade com que se classifica de "melhor música", "melhor álbum" o que está distante de assim se enquadrar de fato. Parece que o que se extrai dessa soma é o entendimento de que arte é absolutamente tudo aquilo que se respira. Simples assim: se eu vou no lixão eu posso catar o resto de tampa de privada e a lata de leite em pó enferrujada e colocá-los sobre um velho tapete vermelho (a lata disposta dentro do espaço deixado pelo resto de tampa de privada, é esteticamente necessário ressaltar!) e transformar isso em uma fenomenal elaboração artística... afinal, eu respirei o aroma sobre-humano do lixão quando os coletei. Se eu junto um osso do fêmur de uma vaca encontrada morta, putrefata, na fazenda de um amigo com uma fronha do travesseiro que eu dormia, formando uma letra T branca (da seguinte maneira: o osso (branco, tratado com cloro) na vertical, e no seu topo, em disposição horizontal, a fronha enrolada esguiamente em linha reta no seu próprio comprimento, tendo no meio desse comprimento o contato direto com o topo do osso), isso é o que há de mais claro na arte. Afinal, eu respirei a vaca putrefata enquanto lhe retirava com cuidados cirúrgicos o seu fêmur, e mais que obviamente respirei por noites seguidas a fronha que viria compor o meu projeto artístico.

Mas e então? Penso o seguinte para ser "o cara" (e como para ser "o cara" basta ter cara para ser vista, barba e boca que fale à torto e a direito, então estou "bem na fita", pois tenho a tríade supracitada) da próxima exposição de artes: vou passar quatro dias seguidos comendo apenas mamão e abóbora, para então evacuar uma linda elaboração alaranjada, toda alaranjada!! Colocarei então sobre um prato branco, de sobremesa. Qual linda e maravilhosa não será minha bicolorida obra de arte (juro que esse trocadilho ridículo não iria existir até o ponto final desse texto), han?! Mas talvez eu tenha que fazer uma foto e expor o meu trabalho apenas por essas vias, colocando a imensa foto na parede da sala de exposições, já que, de outro modo, em vias concretas, minha bela elaboração artística sofreria a injustiça de ser explicada em tons anasalados de voz, com a troca do M pelo B (babão ao invés de mamão, já pensaram?), por efeito do uso de pregadores no nariz do locutor-explicador (que não seria eu, pois infelizmente não saberia desenvolver elucidações abstratometafisicoexistenciais acerca da minha própria arte). Decerto ganharia o Prêmio Nobel de Arte, tal seja — mais do que a arte pela arte — a obra pela arte e a arte pela obra.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009



A Luz Relativa

E se resolvessemos num último instante ficar onde chegamos, e não mais voltar, deixando a sós os passos do caminho que nos trouxe? E quem nos trouxe? Os passos ou o caminho?

E se for cada ano que nos passa, um milésimo de segundo de uma vida que nos transcende além de nós? Fosse a Terra o grão soprado a esmo — entre tantos outros grãos de tantos outros tempos — que por 4 segundos paira no ar antes de chegar ao solo?

Ou seja a Via-Láctea a poeira num vácuo espiral tão inconstante deixado em suspensão por um segundo, nos passos tortuosos do gigante?

Fosse toda a existência tramas de um sonho de alguém que esqueceu de acordar?

Se quando do mais importante "não" dito em toda a vida, se tivesse feito ecoar um "sim"? Estaria eu sentado, estarias tu me lendo? Quantos dos caminhos não escolhidos teriam passado a existir? Quais novas esquinas nos seriam comuns?

E se cada um de nós, eu, você, o Papa, o homem que ganhou o maior prêmio na história da loteria, aquele que daqui a 30 segundos morrerá no leito de uma UTI, aquela criança que chorará sua fome na esteira de um casebre somaliano, se cada um de nós fosse o vírus letal a percorrer o sangue daquilo que de tão grande não enxergamos, quanto valeria a existência, quanto valeria cada carta no jogo dos destinos não concebidos?

E se o sorriso doce que antecede a morte e se o choro que benvinda a vida após o parto fossem o ponto único de cruz na linha que costura uma mesma alma em corpos separados?

Onde estariam os deuses? Eles estariam certos ou estariam errados?


quinta-feira, 14 de maio de 2009

Desacordo Ortográfico



Há um tempo atrás eu dizia e repetia que não andava apreciando muito a ideia (sim, aderindo...adeus agudo) imposta para algumas mudanças de acentuação e outras cositas más (para além do espanhol, em bom português, incidentalmente o adjetivo desqualificativo). Achava que algumas das justificativas para certas mudanças não eram lá bem justificáveis. Mas o tempo passou e meu grande fascínio pela gramática e pela língua portuguesa me fez carinhosamente parar pra ler mais atentamente o passo a passo histórico e os degraus explicativos que permeiam todas as mudanças do Novo Acordo. No mínimo, um compromisso também de quem trabalha com revisão de texto e tem que estar a par dos regimentos que vêm à tona. Pois bem... comecei a simpatizar, e principalmente entender por que algumas coisas ali dentro da caixa ortográfica pediam remodelação, neotransconfiguração, ampliação do corredor de comunhão do jardim da flor do Lácio entre os lusófonos, muito embora alguns dos porquês me pareceram (e são) meio tortos, especialmente no quesito Hifenização. Os próprios "gramatólogos" assumem: algumas lacunas foram criadas e algumas situações não se encaixam para certas mudanças no uso dos hífens. De fato, me parece que algumas regras, ou essa tal lacuna no porquê de algumas mudanças, fizeram o hífen virar um travessão. Daqueles de trave mesmo, no qual a bola teima em bater em todos os centímetros do seu comprimento, mas hesita em entrar no gol, frustrantes travessões atendendo apenas aos santos milagreiros dos goleiros de calças sujas.

Mas a questão, já não mais pessoal nem girando em torno da minha redoma de interlocuções desconfiadas, é que o acordo anda gerando um certo desafeto por aí. Não sei se do Oiapoque ao Chuí, mas pelo menos do Acre à África e Europa me consta que sim. Não vou me alongar a citar os porquês das indignações extra-continentais. Mas ali no nosso Norte brasileiro a coisa é que "acreano" virou "acriano" e os acreanos andam chateados com isso. Alegam que o Acordo está corrompendo, destruindo, dilacerando toda uma raiz histórica e cultural na tradição da locução adjetiva dos seus conterrâneos. Que eles nasceram acreanos e devem morrer com o E cravado na sua história, entre o fio da caneta e as teclas de digitação. Parece que vão criar um manifesto em nível mais extenso, convidando todos os acreanos de fama espalhados pelo país a integrar o coro dos descontentes, os defensores do E. A Glória Perez e o Armando Nogueira são dois dos nomes listados para convocação no protesto. Segundos os acreanos, quando se usa o termo "acriano", a impressão que se tem é que estão falando de alienígenas, tal a larga faixa que os distancia afetiva, histórica e culturalmente desse novo antropotopônimo. Um "Fórum de Defesa da Nossa Acreanidade" está sendo instalado na Assembleia Legislativa.

Não sei bem o quão determinada será essa manifestação e quais resultados ela suscitará. Mas cá com a minha sopinha de letrinhas esquentando na cuca, concordo com eles... podiam abrir uma exceção e deixar o E dos acreanos em paz, resguardados a manter sua tradição. Não sei bem se eu ia dar um show de desapegos e ficar indiferente caso passássemos, eu e meus conterrâneos, a ser chamados de BAEANOS. Sei lá... "i" no "e" dos outros é refresco... e vice-versa!

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Era preciso regar as novas flores


Ela guardou tanto as flores de um jardim antigo, que esqueceu de perceber as cores novas que haviam de surgir no seu caminho.
E se fez casulo, e se guardou, e ao invés de ganhar asas, enredou-se no tempo e no vão das causas perdidas.
E não viu que enquanto esperava a ressurreição de flores tombadas pelo desgaste dos tempos, um sol rodopiava lá fora, e clamava, e pedia que regasse o botão a florescer em novos tons entre agostos que evitavam ser meras cinzas e verões tingidos de azuis marinhos-celestiais.
Ela viveu de podar os jardins à sua volta e a tecer e remendar as bordas de um mundo que já se fazia impalpável à sua realidade.
Ela cultivava sonhos moribundos, e pensava fazê-los viver, qual mãe tentando ressuscitar a cria morta.
E lá fora, um mundo inebriado em esperanças vãs ainda girava carregando girassóis. Até o derradeiro canto dos cisnes... e o murchar das últimas teimosas pétalas.

quinta-feira, 31 de julho de 2008

Dos tempos das coisas


Saudade é evitar o último abraço sobre o chão do porto. É evitar os olhos ali na foto sobre a mesa por já não poder ter o olhar. É deitar calado enquanto grita o peito...e acordar vazio enquanto a alma transborda o que restou.
Saudade é uma caixa aberta na memória, cujas chaves o tempo atirou ao mar.
É a sombra deixada nos caminhos que não se trilham mais de uma vez...
Saudade é aquele girassol que persegue a luz sabendo-se conformado à sua inércia de girar sobre seu próprio mundo e apenas isso... e não poder alcançar o sol.
É querer dizer tanto que o silêncio se torna a única coisa que nos resta para traduzir o coração.
Saudade é tanto, é tanto...mas é tanto que os homens tolos, dizendo-se e querendo-se sábios, não conseguem encontrar a tradução, infelizes algozes de um sentimento sem nome...
É metade de tudo que já escrevi um dia e foi deixado na velha gaveta dos medos daquilo que o mundo não entenderia...
Porque é só o que resta quando o tempo nos leva até as tantas fantasias de outrora.
Porque é só o que grita no corredor silencioso que destrói a razão. E não se cala fácil e não se quer perder.
Porque saudade é querer ser o cais e o mar ao mesmo tempo, para não se deixar vivê-la...